quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Já não há mais coração

O nosso amor é como aquele livro que você me deu e que eu nunca li, perfeito na sua condição imóvel, tentador pelas possibilidades que carrega, irresistível em seu formato, em sua leveza, em seu cheiro de novidade, sem rugas, sem manchas, sem dobras, excelente para o comércio e para a troca. Já o abri com cuidado uma vez ou outra, para ver se ainda tinha cheiro, para ver se já não tinha traças, porém não me interessei pela sua sinopse, nunca me atrevi a avançar da primeira página, aonde está a sua dedicatória de três linhas, três linhas e ali jaz para mim o romance inteiro.
Fantasio com uma leitura repleta de metáforas e mensagens encriptadas que você talvez gostaria que eu desvendasse, sonho com um livro fluido e empolgante que vou recomendar para os amigos e, depois, vou delirar de ciúmes pelo entusiasmo dos amigos, imaginando que, enquanto lêem, eles também estarão pensando em você.
As páginas do nosso livro não têm marcas de dedos, nem dos meus dedos e nem dos seus dedos, as palavras dos nosso livro não formam frases, formam lembranças distantes, daquelas lembranças que lembramos com carinho por não sabermos mais como realmente aconteceram, apenas queremos que sejam boas, apenas queremos que tenham existido de verdade, os parágrafos do nosso livro não têm pontuação, são sentidos pelo ritmo da leitura (ou da não-leitura), são feitos de mudanças e de vazios, e os vazios nunca são feitos para serem lidos - ou seriam os vazios as partes mais importantes da leitura?
O nosso amor está, sim, naquele livro fechado e aderido à prateleira que você me deu sem também ter lido. No início me pareceu um desperdício, um desserviço do amor para com a arte, uma pobreza ter um livro para nunca tocá-lo, uma afronta guardar palavras, esconder palavras, manter folhas e mais folhas de palavras em cativeiro. Não obstante, o livro manteve seu papel lúdico e, no seu silêncio, não destruiu nenhuma das nossas ilusões, nem as minhas ilusões e nem as suas ilusões, nosso livro parece mais livro enquanto continua fechado, pois acredito que, assim como eu, você tem medo de abri-lo e não gostar da história, e devo dizer que uma ilusão sempre vale mais do que uma leitura.

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